Zé Ramalho fala sobre seu primeiro CD de inéditas desde 2007
Zé Ramalho cortou a orelha. Desde que decidiu ser seu próprio cabeleireiro, há uns cinco anos, está sujeito a esse tipo de acidente. Antes, frequentava o mesmo salão do colega Chico Buarque e do amigo Fagner, no Rio. Desistiu porque era muita fofoca para o seu gosto.
O paraibano de 62 anos que canta falando (ou fala cantando) sempre encontra seu jeito próprio de fazer as coisas. Conhecido por hits como "Avôhai", "Admirável Gado Novo", "Chão de Giz" e "Frevo Mulher" e pelas loucas letras metafóricas, passou os últimos anos produzindo apenas álbuns de covers, de Beatles a Luiz Gonzaga. E brigando com as gravadoras. Decidiu então criar um selo, o Avôhai Music, para lançar seu primeiro CD com canções novas desde 2007, "Sinais dos Tempos".
Canções proféticas, como "Anúncio Final", "O Começo da Visão" e "Portal dos Destinos", apontam que ele está ligado a uma data especial. "2012 é o fim do calendário maia, e alguns acreditam que será o fim do mundo. Por isso, escolhi esse ano para lançar um disco de inéditas."
"Sinais dos Tempos" também tem a ver com não ficar para trás. Zé está preocupado em lançar o disco no iTunes, quer fazer um clipe em 3D e se diverte procurando covers dele mesmo no YouTube.
"Põe lá: Nativo do Amazonas cantando 'Avôhai'. É lindo. Sem o YouTube, jamais poderia ver um índio do Amazonas cantando minha música, todo desafinado, sem camisa, em frente ao computador. " Outro favorito mostra dois bolivianos cantando "Bida de Gado" (na pronúncia em espanhol) no metrô de São Paulo.
Mas o músico não precisa de vídeos para saber da repercussão de suas músicas. Em suas caminhadas diárias na praia do Leblon, onde mora, é saudado por "vendedores de coco, diretores de cinema e garis". "Cada um me cumprimenta com um trecho de uma música minha."
Caseiro, ele raramente dá entrevistas ao vivo e faz pouquíssimas fotos, mas chega aprumado para o encontro com Serafina. A camisa bordada foi a mulher, Roberta, que "trouxe de Nova York". Ela maquiou o rosto do marido, com sulcos bem marcados, nariz largo e lábios finos, e retoca a base enquanto ele, com a voz grave, diz: "Chega, tá bom".
GAROTO DE ALUGUEL
A história de José Ramalho Neto começa no meio da caatinga do sertão paraibano, na pequena Brejo do Cruz, onde nasceu. Aos dois anos, perdeu o pai, afogado num açude, e foi criado pelo avô.
Quando a família se mudou para João Pessoa, tomou gosto pela música e começou a se apresentar em bailinhos tocando hits da jovem guarda. Foi convocado para servir no Exército aos 18 e começou a faculdade de medicina, mas, em meados dos anos 1970, largou tudo para tentar ser estrela lá no Rio de Janeiro.
"Cheguei na rodoviária com uma viola e uma sacola. Dormia na rua, na areia. Meu quarto era ali, na frente do Copacabana Palace", lembra. Em plena ditadura militar, sua cabeleira era sua defesa. "Eles olhavam para mim e diziam: 'É só um maconheiro. Deixa ele aí'."
Já tinha começado a compor as próprias músicas e a tocar em bandas de amigos, como Alceu Valença, mas precisava de dinheiro. E se virava como podia. Na canção "Garoto de Aluguel", diz: "Quero um pagamento para me deitar...". "Conhecia meninas em shows e elas me levavam para casa. Escutavam minhas histórias, ficavam com peninha e me davam uma ajuda de custo", explica. "Não ficava na esquina de madrugada."
Outra música que nasceu de uma experiência muito particular foi "Avôhai". Ele tinha tomado cogumelos alucinógenos na fazenda de um amigo quando viu no céu a "sombra gigantesca de uma nave espacial". "Então, uma voz sussurrou no meu ouvido: 'Avôhai'. Foi uma coisa mediúnica, espiritual. Avôhai é meu avô que me criou, avô e pai", diz. "Captei o sentimento de espiritualidade lisérgica. Mas essa coisa de uma voz falar no meu ouvido nunca mais aconteceu."
EXTRAS E INTRAS
Zé Ramalho é dos poucos artistas que fala sem vergonha sobre sexo, drogas e ETs. Acredita não só em seres extraterrestres como em intraterrestres. "Eles estão aqui, consertando o planeta. A criatura que acharam em Varginha, nos anos 1990, era um deles, coitado", lembra o cantor, que virou referência no assunto.
"Uma vez, um homem que se dizia representante da ordem dos Illuminati me procurou para dizer que, com a minha música 'Kryptônia', eles conseguiam fazer contato com algumas 'espécies'."
Sobre drogas, diz que é fácil falar porque o problema já foi resolvido. "Durante uns três anos, tudo o que fiz foi ligado à cocaína, só pensava nisso." Ficou anos sem compor nem gravar e fazia shows para se manter. "Um dia, estava me preparando para começar mais uma etapa de 'cheiração', quando peguei um canudo e me lembrei das náuseas que eu sentia. Já não havia nenhuma sensação de prazer. Parei. Sem clínica, sem psicanálise. Pela mesma porta que entrei eu saí."
O problema então foi reconstruir a sua imagem: "Nos shows, as pessoas jogavam petequinhas de pó no palco. Eu recolhia e jogava tudo fora".
Logo voltou a gravar. "Não tenho concorrente na música brasileira. Meu lugar estava todo empoeirado, mas ainda estava lá."
A retomada aconteceu com a série "Grande Encontro", parceria com a prima Elba Ramalho e os amigos Alceu Valença e Geraldo Azevedo, de 1996 a 2000. Em 1997, chegou ao seu primeiro milhão de cópias com um álbum, "Antologia Acústica".
RAUL SEIXAS X BOB DYLAN
Em 2001, Elba e Zé colocaram a música nordestina no palco do Rock in Rio 3 e, no mesmo ano, ele lançou o primeiro e mais polêmico de sua série de álbuns covers, "Zé Ramalho Canta Raul Seixas".
Amigo de Raul, com quem planejava gravar um disco e de quem herdou uma legião de fãs, enfrentou a barreira de Paulo Coelho. O escritor não autorizou a regravação das músicas que compôs com Raul. "Achei grotesco, sem elegância nenhuma. Mas não há como uma pessoa me interromper." Zé gravou músicas compostas só por Raul, sem parceiro. Em 2010, Paulo Coelho liberou as canções para o lançamento da coletânea "A Caixa de Pandora", do paraibano.
Gravar Bob Dylan foi bem mais fácil. Adaptou livremente as músicas para o português ("Mr. Tambourine Man" ganhou um trecho que diz "Hey, Jackson do Pandeiro") e suas versões foram aprovadas "com louvor" pelo autor.
O Dylan paraibano está celebrando 35 anos de carreira porque desconsidera o celebrado álbum "Paêbirú" (1975), feito em parceria com Lula Côrtes, considerado um clássico do rock psicodélico brasileiro e o vinil mais raro do Brasil (custa cerca de R$ 5.000). "Minha questão é simples: deviam ter descoberto o disco na época. Reeditaram na Alemanha e não recebi nenhum centavo."
O músico prefere olhar para o futuro. Planeja lançar mais um disco de covers, dessa vez com seus antigos ídolos da jovem guarda. E trabalhar com seu selo em todos os formatos possíveis: "Blu-ray, 3D, Dropbox, tudo o que você imaginar".
Envelhecer é algo que não assusta o pai de seis filhos e avô de cinco netos. "É lindo ter a perspectiva de viver muito. Quero ver esse mundo louco, rápido, conectado, em que dá para saber o que as pessoas estão fazendo lá na Síria." Para falar de morte, segue fazendo "covers", mas de frases de amigos. "Como disse Jorge Ben Jor, outro dia: 'Morrer não está nos meus planos'. Ou, como disse Bob Dylan, aos 69 anos: 'Estou me sentindo na metade da minha vida'."
Fonte: Folha de São Paulo