Por Pedro Alexandre Sanches | Ultrapop – Sexta-feira, 05 de abril de
2013
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Ainda sobre aquele lance esquisito de a gente só elogiar os
artistas depois que eles morrem. Mais ou menos naqueles mesmos dias tristes da
morte de Chorão, andava hospitalizado o cantor e compositor paraibano (de Brejo
do Cruz) Zé Ramalho, hoje com 63 anos. Ele sofreu uma cirurgia cardíaca, depois
melhorou, voltou para casa. Não deu nem tempo para a torcida descobrir que ele
era (é) um gênio.
Sempre achei que ele é (um gênio), mas ao me lembre nunca
escrevi isso com todas as letras. A caravana segue. Qualquer dia desses Zé
Ramalho vai morrer, e aí eu e a claque toda teremos a chance de ouro de
revisitar sua obra e prestar homenagens à sua fabulosa criatividade, geralmente
tão mal percebida pelos ingratos do jornalismo musical e do fanatismo emepebê.
Mas, você já sabe, ando rebelde com essa nossa hipocrisia
pós-morte, facilmente confundível e misturável com o medo que a gente fica de
morrer quando fica sabendo que fulano morreu. Zé Ramalho não morreu, oba!, e
considero ele um gênio mesmo assim – será que já não passou da hora de dizer
isso?
Também não é o caso – seria grotesco – de fazer um obituário
derramado sobre quem ainda não morreu. Acontece apenas que entrei numas de
ficar ouvindo Zé Ramalho, um dos meus artistas favoritos (já te contei?), e
fiquei com vontade de fazer uns comentários dispersos, esparsos, perdidos.
A primeira dúvida que ronda nem vou tentar responder: por
que se fala tão pouco de Zé Ramalho? Porque ele não tem nada de genial e eu
estou delirando? Duvido e discordo. Porque ele já foi genial e não está mais no
auge? Duvido e esperneio: o Tá Tudo Mudando – Zé Ramalho Canta Bob Dylan, álbum
que ele lançou há apenas quatro anos, é um baita, baita, baita disco.
Inteligente, esperto, gostoso, popular, poético, musical. O cara lá do sertão
seco da Paraíba reinterpreta em português canções do cara lá das neves do norte
caipira dos Estados Unidos. “Mr. Tambourine Man”, por exemplo, vira “Mr. do
Pandeiro”, mister Jackson do Pandeiro, outra das influências cruciais do Zé.
Por sinal, ele vem numa fase nostálgica suculenta, em que
tem ajustado contas com alguns de seus artistas prediletos. Nos últimos 12
anos, gravou discos em tributo a Raul Seixas, Dylan, Jackson e Luiz Gonzaga,
Beatles. Se ninguém se importa em definir Zé Ramalho, ele o faz por ele mesmo
(e para nós): profeta trovador nordestino, artífice de original fusão roqueira,
emepebista, forrozeira, folkeira de Raul, Dylan, Gonzagão etc. A fase
nostálgica, por sinal, começou com o melhor de todos os volumes, o CD duplo 20
Anos – Antologia Acústica (1997), em que Zé se auto-homenageia reinterpretando
na ponta da faca 20 de seus próprios grandes sucessos - sim, ele possui 20 (ou
mais) grandes sucessos, não é para qualquer um.
De cara essa mistureba me faz pensar na (e ouvir a) “Dança
das Borboletas”, do primeiro disco, de 1978, um rock psicodélico-progressivo de
letra simbolista, surrealista, hiper-realista, pós-realista. As letras do Zé
são um colosso, embora árduas e difíceis de compreender. “Ô, meu velho e
invisível avohai/ ô, meu velho e indivisível avohai”, ele cantava nesse mesmo
disco, em “Avohai”, para só sabe-se lá quando a gente entender que “avohai” era
mistura de avô com pai, de um menino que não teve pai e teve no avô seu avohai.
Outro momento afiado do Zé é o segundo LP, A Peleja do Diabo
com o Dono do Céu (1979), de capa à moda de Glauber Rocha, em que o bardo de
rosto hiper-expressivo é ameaçado pelas unhas satânicas de Zé do Caixão (foto).
Vem daí aquele que é possivelmente o maior monumento musical de sua história (e
um dos maiores da história da música brasileira), “Admirável Gado Novo”. “Ê, ê,
ô, vida de gado/ povo marcado ê, povo feliz” – gadinho, povinho, que ele fala,
é nós, como diria outro compositor nordestino muito mais festejado que este.
Desse colossal LP sai também outra de suas pérolas
simbolistas, “Frevo Mulher”, que ficou mais conhecida na versão de sua então
esposa, a cearense Amelinha, e ostenta versos impactantes, misteriosos:
“Outonos caindo secos no solo da minha mão/ gemeram entre cabeças a ponta do
esporão/ a folha do não-me-toque, o medo da solidão”, ou “é quando o tempo
sacode a cabeleira/ a trança toda vermelha/ um olho cego vagueia procurando por
um”. Marco Feliciano deve se esconder debaixo da cama quando ouve isso.
Aí vem A Terceira Lâmina, de 1981, o cantador sertanejo
áspero rascando a voz como lâmina no gogó do nosso pescoço. “É noite que vai
chegar/ é claro que é de manhã/ é moça e anciã”, o pop-profeta profano condensa
toda a nossa existência, num galope nordestino chamado “Galope Rasante”.
“Descobrir o cangaço com liberdade/ é saber da viola, da violência”, a
forrozeira Marinês troveja no disco Força Verde, de 1982, em “Banquete de
Signos”, conhecida primeiro em 1980, na gravação também trovejante de Elba
Ramalho, sua prima. Desde Gonzagão nossos artistas nordestinos tentam decifrar
Lampião e o cangaço, e Zé é dono de bom pedaço desse trajeto.
A produtividade do trovejador diminuiu nos anos seguintes,
em termos de quantidade de sucessos na parada. Mas ele voltou à carga
personificando ninguém menos que o lobisomem – enquanto o ator Ruy Rezende dava
figura ao personagem na novela Roque Santeiro (1985), Zé era o dono da voz.
“Impérios de um lobisomem que fosse um homem/ e uma menina tão desgarrada,
desamparada/ seu professor”. Quem nunca teve aulas de lobisomagem com professor
Ramalho que atire os primeiros dentes de alho.
Não tem final este texto, até porque Zé não morreu e não há
de morrer nos próximos muitos e muitos e muitos anos. Termino por aqui então,
lembrando que ele além de tudo o cara é bom de fazer versões, e em 1997 teve a
pachorra de transformar “Knocking on Heaven’s Door”, de Dylan (não é dos Guns
n’ Roses, criança) em, literalmente, “bate, bate, bate na porta do céu”. Você
pode achar que eu estou louco ou estou inventando, mas afirmo que essa versão é
de arrepiar, “me sinto até batendo na porta do céu”. A propósito, há também uma
outra versão de entortar, de 1992, "A Serpente e a Estrela", você se
lembra?: “Há um brilho de faca/ onde o amor vier/ e ninguém tem o mapa/ da alma
da mulher”. Às vezes é difícil explicar por que a gente gosta de determinada
coisa ou de certo alguém - aí, não raro, a gente fica mudo, sem saber o que
dizer. Obrigado por existir, seu Zé Ramalho.