Um encontro em cordel

Peleja de Zé Limeira com Zé Ramalho da Paraíba
 
Arievaldo Vianna - Fortaleza
Tupynanquim Editora


Esse cordel de Arievaldo é muito engraçado e interessante. Achei curioso quando recebi os originais, pela riqueza de imagens e habilidade nas modalidades de cantoria aqui apresentadas.

Sextilhas, martelo agalopado e uma das mais argutas e perigosas: "O Cantador de Vocês", que exige atenção redobrada dos cantadores quando a estão usando. Fico lisonjeado pelo modo como apareço nesse libreto numa peleja "virtual" com o lendário Zé Limeira, personagem que tanto me inspirou ao lado dos grandes catedrátidos (Drummond, Vinicius).

Parabéns ao Arievaldo por ser um cultor desse universo poético-popular, que precisa de gente como ele para se manter na cultura e formação do povo simples e bom do nordeste brasileiro.

Zé Ramalho
Rio de Janeiro, março de 2000


Peleja de Zé Ramalho com Zé Limeira

Cordel - 04/2000
Arievaldo Viana

Glorioso Santo Afonso
Da Siqueira do Tetéu
Chica Bela, Neco Filho
Meu "padini" Cabra Miguel
Ajudai a minha lira
Pra rimar mais um Cordel...

Eu falo de uma peleja
Cantoria de primeira
Que houve no ano passado
Lá na Serra do Teixeira
Entre o cantor Zé Ramalho
E a alma de Zé Limeira.

Eu estava um dia na feira
Traçando um velho baralho
Soprou uma ventania
Mais quente do que borralho
Chegou ali de helicóptero
O Cantador Zé Ramalho.

Desceu e foi se sentando
Bem na ponta da calçada
O cabelo "arrupiado"
E a viola bem afinada
Disse: Marquei um encontro
Com uma alma penada!

Eu lhe perguntei: Poeta,
Essa história é verdadeira?
Ele disse: É com certeza
Eu nunca falei besteira,
Vim atender um chamado
Do finado Zé Limeira.

Quando ele fechou a boca
Chegou uma assombração
Com uma viola nas costas
E uma bengala na mão
Chapéu de couro quebrado
E um surrado matulão.

Zé Ramalho então saudou
O mestre com reverência.
O povo se aglomerava
Formando grande assistência.
Disse o Limeira: Ramalho
Eu quero é cantar Ciência!

Ramalho: Meu professor Zé Limeira
Vim atender seu pedido
Cantar contigo um martelo
Todo em bemol sustenido
Pegue o bordão da viola
Que eu quero ouvir o tinido!

Limeira: Eu sei que tu és sabido
Formado em Pilogamia
Só canta prosopopéia
Ao pingo do meio dia
Mas eu vim do "Puigatóro"
Escanchado numa jia.

ZR - Pra começar a porfia
Do jeito que o povo quer
Eu vim lá de João Pessoa
Montado num escaler
Estou pronto pra cantar
Tudo que o mestre quiser.

ZL - Eu já deixei Lucifer
Mamando numa ticaca
Vi um jumento chorando
Por causa duma macaca
E o macaco seu marido
Bebendo e puxando faca.

ZR - Não gosto de urucubaca
Sou cantador vacinado
Canto galope e mourão
Xote, baião e xaxado
Mas vamos entrar agora
Num martelo agalopado.

ZL - Zé Ramalho eu agora lhe previno
Cantador não agüenta o meu rojão
Eu tomando um conhaque de alcatrão
Dou no velho, na mulher e no menino
Eu já fiz Satanás bater num sino
E botei paletó numa guariba
Cantador que nasceu na Paraíba
Todo ele conhece o meu repente
São José foi cantar mais São Vicente
São Francisco espiava lá de riba.

ZR - Já andei num velho disco voador
Chega o vento esticou minhas madeixas
Lá cantei com o finado Raul Seixas
Que também era um nêgo trovador
Lá nos Andes vi a pena do condor
Que no Olimpo torturava Prometeu
Me contaram que seu "figo" ele comeu
E depois deu um arroto de lascar
Mulher feia é o terror do lupanar
lá diziam Gutemberg e Galileu.

ZL - Galileu, eu só conheço Jesus Cristo
Gutemberg este eu nunca ouvi falar
Num sei nem o que diacho é lupanar
Nem prometo que é pra num ficar mal visto
Frei Caneca dirigia um velho misto
Nessa linha de Campina a João Pessoa
Dom João Sexto casou com uma coroa
Muito horrive da costela pro toitiço
Do barrão eu só gosto do chouriço
E da fême eu só gosto se for boa!

ZR - Já subi o Monte Olimpo num vapor
Lá mostrei a minha lira para Apolo
Veio Vênus e sentou-se no meu colo
Deu-me um beijo com ternura e com ardor
Veio Marte e me disse: - Cantador
Cante agora um martelo malcriado!
Mas Saturno vendo a força do meu brado
Deu-me outro martelo mais possante
Fabricado numa forja interessante
Todo em ouro, de brilhantes cravejado.

ZL - Eu subi foi a Serra do Teixeira
À cavalo num jumento empanzinado
Este bicho deu um peido tão danado
Que azulou a cangalha e esteira
E depois foi tão grande a meladeira
Que ninguém suportava a catinga
Veio logo quarenta urubu tinga
Agarraram este jegue pela orelha
Dez num pé, dois no rabo, um na sarnelha
E um na crina, servindo de curinga.

ZR - Zé Limeira teu cantor tem liberdade
Pra dizer o que sente e o que pensa
Já contei com Geraldo e Alceu Valença
Mas nenhum tem a tua habilidade
Tuas rimas absurdas na verdade
São da fonte da sublime inspiração
Eu tomando uma cachaça com limão
Também faço martelo agalopado
Mas o teu é de aço e foi forjado
Nas crateras vulcânicas de Plutão!

ZL - Este tal de Plutão era um cachorro
Que caçava mais o velho meu avô...
Num sei nem o que é disco avuadô
Se eu ver um bicho desses, sei que morro!
Certo dia, na Matriz lá do Socorro
Vi um disco de Vicente Celestino
Apesar de Celestino, o seu destino
Era mesmo rodar aqui no chão
Eu tomei três conhaques de alcatrão
E agarrei a Maria de Virgulino!


ZR - Eu já vi que o mestre não viaja
Nem conhece o raio da silibrina
Nunca viu a maconha e a cocaína
Um veneno pior que o da naja.
É conhaque de alcatrão que lhe encoraja
A cantar este martelo diferente?
Zé Ramalho, por não ser intransigente
Ingressou na escola do absurdo
Eu já vi Satanás tocando um surdo
Festejando a chegada de um crente!

ZL - Zé Ramalho, absurda é esta vida
Onde o homem explora o semelhante
Onde o rico vive sempre triunfante
Maltratando toda a classe desvalida
Minha rima não é louca nem perdida
Quem tá doido é o pobre do "pranêta"
É violência, é roubalheira, é mutreta...
Eu prefiro o teu galope soberano
Viajando noutra esfera e noutro plano
Amontado no rabo dum cometa!

Zé Ramalho se assombrou
Com tamanha lucidez
E o realismo da estrofe
Que Mestre Limeira fez
Só sendo o Espírito Santo
Que o inspirou desta vez.
(...)

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