Aurílio Santos é citado em jornal O ESTADÃO de São Paulo

Vida de matado
 De como Zé Ramalho morreu sem ter morrido e voltou do Além-Leblon para provar sua condição de vivente com show ebulitivo no sertão da Bahia




 JORNAL O ESTADÃO
  São Paulo,  29 de junho de 2013 | 15h 53

 Jotabê Medeiros

Quando acordou na manhã do dia 8, Zé Ramalho descobriu que tinha morrido. Sua morte gerava comoção por todo canto. Adriane Galisteu ficou inconsolável. Muitos fãs saíram aos prantos. "Peguei um susto, fiquei em estado de choque", afirmou Clegem Castro Gaia. "Fiquei triste", lamentou Ângela Câmara. "Sem essa voz maravilhosa, eu e o mundo todo ficamos tristes", disse Roseane Ferreira Lopes.
O novo morto ficou no topo dos Trending Topics do Twitter o dia todo. Congestionou o Facebook. O maior fã de Zé Ramalho do mundo, o paraibano Aurílio Santos, de 42 anos (que mantém em Brejo do Cruz, PB, um museu em tributo ao ídolo), ligou para João Pessoa para certificar-se dos fatos. "Sabia que não era verdade", disse Santos. Atônito (e furioso), o próprio Zé Ramalho levou horas para voltar do além, digo, do Leblon, para desmentir os rumores.
"Semelhante ao boato criado contra o Bolsa Família, divulgaram, hoje, um boato sobre minha saúde. Bem, se nem a PF consegue encontrar os cyberbandidos, o que fazer?", lamentou o filho mais ilustre de Brejo do Cruz. Foi uma "barriga" (notícia furada, no jargão jornalístico) do site MSN.
Os fãs voltaram a ficar exaltados, dessa vez contra a falsa notícia que os prostrara. Vicente Vilela escreveu: "Mataram o Zé Ramalho na internet! Por que não matam de verdade os funkeiros, axezeiros e os arrocheiros? Eles sim matam nossa música".
Mas não bastou o desmentido. Criou-se uma atmosfera de mistério em torno da real saúde de Zé, que tinha se submetido a um cateterismo no início do ano. Alastrava-se uma teoria conspiracionista semelhante àquela que, em 1966, espalhou a notícia de que Paul McCartney tinha morrido e colocaram em seu lugar um sósia, um tal William Campbell (que estaria in charge até hoje).
Zé Ramalho teve de apelar. Recorreu à coluna de Ancelmo Gois em O Globo, que publicou uma foto do cantor abraçado à mulher. Mas tinha pinta daquelas fotos que os sequestradores enviam para as famílias para provar que ainda não mataram o refém.Mineiramente desconfiada, a reportagem do Aliás resolveu conferir com os próprios olhos. Afinal, Zé Ramalho é nosso Dylan, nosso Leonard Cohen, nosso Neil Young da caatinga (passado pelo coador do Cego Aderaldo). O show mais próximo de Zé seria em Piritiba, Bahia, na festa de São João.
Piritiba, a 316 km de Salvador, abriga um dos últimos São Joões ingênuos do sertão. As barracas vendem linguiça com macaxeira, espetinho de carne seca e caldo de xibiu (não esse; outro caldo, com mandioquinha, bacon e um cheiro característico). Um dos maiores sucessos de Raul Seixas, Capim Guiné, tem a cidade como ponto de partida: "Plantei um sítio/ No sertão de Piritiba/ Dois pés de guataíba/ Caju, manga e cajá", diz a letra. Virou um hino da localidade, as pessoas o cantam nos bares, na igreja, nas praças (especialmente o verso mais maroto: "Tá vendo tudo/ E fica aí parado/ Cum cara de viado/ Que viu caxinguelê").
A cidade, que tem 24 mil habitantes, dobra de população para o São João Capim-Guiné (15 mil visitantes vêm de longe). Os hotéis não dão conta, então grande parte dos que vêm das imediações se hospeda em casas de família locais. Avôs passeiam com os netos pela praça comendo tapioca. No coreto montado no palco só sobem sanfoneiro, triângulo e zabumba e forró de pé de serra. No palco maior, as atrações da pesada. Zé Ramalho será a maior delas. Na rodoviária, Edson Maciel, que veio de ônibus da cidade vizinha de Miguel Calmon, contraria a expectativa. "Na verdade, segunda-feira é que será bom, tem o show do Canário do Reino", confessa, timidamente.
Mas a maioria absoluta do povo reunido na praça espera por Zé, quer ver Zé vivo e bem. Erguem os filhos bebês para o céu, abraçam-se nos coros. Não são fãs convencionais - afinal, convenhamos, é muito mais fácil cantar "aaaah, lelek lek lek" do que versos de Zé Ramalho como "meu treponema não é pálido nem viscoso/ os meus gametas se agrupam no meu som".
Mas Zé Ramalho descobriria no sertão da Bahia, na madrugada do último domingo, que a vida geralmente é mais dura com os vivos que com os mortos. O cantador deu entrada no Hotel Piritiba às 11h. Não saiu do quarto até as 23h. Esperava por ele, avidamente, todo o contingente jornalístico da região: os radialistas das rádios Aymoré FM, Ipirá e Jacobina FM, além de um intrépido repórter do jornal Correio do Sertão.
Todos reclamaram que, apesar do dia inteiro de campana, Zé não dera as caras. Recusou receber até o prefeito, que queria conferir se sua maior contratação (pagou cerca de R$ 150 mil pelo show) estava mesmo viva e quicando na área. "O homem é difícil. O pior é que agora tenho de apresentar o show ali na frente de todo mundo levantando a bola dele, mas, pelo estrelismo do cabra, tenho vontade é de não falar nada", reclamou Bruno Teixeira, da Aymoré FM.
Um clima de mistérios da meia-noite começou a cercar a praça do São João de Piritiba. Subitamente, a praça, prenhe de forró, silenciou. As bandas que se apresentariam antes de Zé Ramalho, num palco secundário ao lado do principal, Candeeiro Aceso e Forró no Grau, foram proibidas de tocar. Ninguém explicava o motivo daquilo.
Pouco antes da meia-noite, hora do show, um destacamento da Polícia Militar com 16 policiais cercou o ônibus da produção de Zé Ramalho. A prefeitura soubera de uma ameaça da equipe de Zé de cancelar a apresentação. No ônibus sob escolta, estavam os equipamentos. Seguiu-se uma negociação. Os palcos foram esvaziados e os circunstantes foram advertidos de que, se um único cidadão se interpusesse entre a van que traria o cantor e o palco, Zé não cantaria.
Quando finalmente apareceu, Zé Ramalho entrou se esgueirando, como um cabra que corria de uma volante no meio da caatinga. Entrou tateando, segurando nas paredes de compensado para se equilibrar. O empresário do cantor chegou a ser barrado na entrada do palco. "Eu sou o empresário! Eu mando nele!", berrou o executivo ao segurança, apontando para o tour manager lá no palco, o homem que mandara barrá-lo. Mas, apesar de avexado, Zé parecia bem, e pareceu melhor ainda quando atacou a primeira música no violão verde, O Vento vai Responder, sua versão de Blowin’ in the Wind, de Dylan. "Quantos ouvidos terá o poder/ Para ouvir o povo chorar?".
Quase todas as canções de Zé Ramalho, um dos artistas brasileiros que melhor traduziu o sentimento do sertão nordestino, parecem fazer referência a revoltas, rebeldias súbitas, tomadas de atitude sanguíneas: Frevo Mulher, Companheira de Alta Luz ("Você faz chover no fogo do sertão/ Você faz o mar secar e o céu cair no chão"), Eternas Ondas ("Derrubando homens entre outros animais"), Vila do Sossego ("Que nas torturas toda carne se trai").
Os versos que se seguiam encaixavam numa atmosfera ebulitiva de protestos e manifestações. "Discutir o cangaço com liberdade/ É saber da viola, da violência", cantava Zé, em Banquete dos Signos, prosseguindo sem interagir com a multidão. Só quando cantou Vida de Gado, colou no refrão "povo marcado, ê, povo feliz" um "É o Brasil!".
Após 1 hora e 15 minutos profissionais, o show terminou. O público berrando "mais um, mais um", e o artista se pirulitando aperreado pelos fundos. Ao sair do palco, o único contato entre Zé Ramalho e o repórter - a mão na seda da camisa do cantor e a pergunta à queima-roupa: "Zé, o que significam esses protestos pelo País?". Zé se desvencilhou e isolou-se na van, que sumiu cercada pelos batedores da polícia.
O suspense da madrugada continuou ecoando por ali muito tempo ainda, porque a equipe de Zé Ramalho proibiu que o forró prosseguisse no palco ao lado enquanto desmontava seu equipamento. No dia seguinte, um ainda contrariado prefeito viria em busca da reportagem na rodoviária de Piritiba. Ivan Cedraz, de 68 anos, está no segundo mandato na prefeitura de Piritiba (já foi vice-prefeito três vezes). E estava bufando.
"Zé Ramalho criou dificuldades inexistentes, dificuldades que achou suficientes para não fazer o show", reclamou. "Foi por causa disso que eu convoquei a polícia e nós bloqueamos o ônibus dele com dois carros", contou. Parece que, vivo ou morto, Zé teria de cantar naquela noite.
Segundo Cedraz, a equipe de Zé Ramalho reclamou que o equipamento que a prefeitura forneceu não era da marca que tinham pedido em contrato. "É uma exigência desmedida. Zezé di Camargo e Luciano e Gilberto Gil já tocaram aqui com o mesmo equipamento. Tive um arrependimento profundo de tê-lo contratado", desabafou.
Otto Guerra, o empresário de Zé, estava indeciso sobre se falava ou não sobre os bastidores daquela Peleja de Zé Ramalho no Sertão de Piritiba. Confirmou que a apresentação se deu sob ameaça. Por telefone, contou que a banda chegou à cidade às 11h vinda de Feira de Santana. E que havia "deficiências grotescas" na estrutura montada, com tábuas moles e madeirites que afundavam. Temeu por colapso da estrutura.
Também disse que faltavam quatro caixas de som para o equipamento do artista, e que essas caixas foram providenciadas somente após muita insistência. Segundo Guerra, só havia no local um terço do que tinham pedido. Ainda assim, Zé Ramalho se dispôs a tocar. "Eu faço o que você quiser", disse Zé a Guerra.
"No meio do show, falhou amplificador, deu pane na caixa de monitores, teve problema de fase", enumerou. A equipe também temeu por sua integridade física. "É um lugar distante, no qual o prefeito se sente como um coronel, acha que é o dono da cidade", lamentou.
O perrengue foi mais um tempero para o coquetel que gestou Zé Ramalho da Paraíba, além das seitas apocalípticas, cantores de feira, Dylan, forró de pé de serra, alquimistas, Beatles, extraterrestres de Quixadá, Gonzagão. Foi com esses elementos que ele legou, em 40 anos de carreira, um pouco da melhor música moderna nordestina.
José Ramalho Neto, de 63 anos, começou na carreira há mais tempo que os apocalipses que se anunciam no sertão - no início dos anos 1970, tocava guitarra pela Paraíba imitando George Harrison no conjunto Os Quatro Loucos. Mas ele definiu como marco inicial ("O que aconteceu antes não teve importância") o lançamento de Zé Ramalho (CBS, 1977), álbum no qual gravou sua canção chave, Avôhai.
"Essa canção eu compus após uma revelação, uma visão com um chá de cogumelo num pasto na Paraíba". O nome Avôhai é uma fusão das palavras "avô" e "pai" - o pai do cantor morreu afogado no Açude dos Poços, em Teixeira (PB), e o avô criou Zé.
"Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei." Os versos de Avôhai, cantados na madrugada conturbada de Piritiba, ainda ecoavam pela estrada, entravam insistentes pela janela do ônibus enquanto este cortava as vilas do sossego da região (Barragem do França, Sumaré, Miguel Calmon) e deixava para trás as placas "Conheça nossas serras, lindas paisagens e cachoeiras".


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