Camuflado
numa alameda do bairro do Flamengo, o ex-cadete do exército José
Ramalho Neto encravou em solo fluminense um QG de raízes paraibanas: a
produtora Jerimum. As simbologias agrestes são marcas constantes e
profundas na obra de Zé Ramalho. Sob a umidade tropical do Rio de
Janeiro, a aridez do sertão ainda é metáfora chave para ingressar nos
numerosos códigos - místicos, psicodélicos, ufológicos e de velhos
ícones do rock'n'roll - cifrados em suas composições.
Ele
conta que "desceu ao mundo" em março de1949, em Brejo do Cruz, nos
confins da Paraíba. Depois da morte do pai, poeta, afogado num açude do
sertão, foi criado pelo avô para ser médico.O avô-pai, após uma viagem
lisérgica do neto envolvendo cogumelos, extraterrestres e mensagens
telepáticas, virou a canção-hino "Avôhai".
Numa conversa animada que levou a tarde inteira de uma segunda-feira, Zé Ramalho falou sobre o disco novo,Canta Bob Dylan - Tá Tudo Mudando
e a facilidade que encontrou para liberar canções do velho Zimmermann -
o exato oposto ocorreu comas canções assinadas pela dupla Raul Seixas e
Paulo Coelho no projeto Zé Ramalho Canta Raul Seixas. O
paraibano abriu suas vivências químicas, sem pudores e em dois
capítulos: primeiro, com os cogumelos alucinógenos; depois, com a
cocaína. E explicou sua negação para se manifestar sobre o álbum que fez
como Lula Côrtes, Paêbirú: "Por que tantos anos depois? Deviam ter
falado sobre isso há 30 anos!"
Onde sua história começa?
Apesar
de eu ter nascido em Brejo do Cruz, e não "da" Cruz, como muita gente
confunde, por causa da música do Chico Buarque, depois de dois meses meu
avô conduziu a família pra Campina Grande, onde ficamos até 1960. É lá
que, pela primeira vez, eu escuto rádio, com 5 anos de idade. As rádios
AM eram a única novidade, as novelas do rádio e os programas de
auditório ao vivo. Na Rádio Borborema vi show de Marinês e sua Gente,
Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Lembro que tivemos que ir pra João
Pessoa, porque meu avô sofria de pressão alta e Campina Grande fica em
cima da Serra da Borborema. Aos 13 anos, quando o intelecto foi se
abrindo, a música ganhou mais força. A Jovem Guarda começou a aparecer
para mim. Especialmente, Roberto Carlos e Renato & Seus Blue Caps.
Eu estudava no colégio Pio X, dos Irmãos Maristas, em João Pessoa. E,
nesse colégio, de educação extremamente fina, nos jograis que a gente
tinha quefazer uma vez por mês, um dos trabalhos era organiza rum grupo
musical em cada classe. Depois fazer uma espécie de concurso entre os
alunos. Eu já sabia dar três acordes no violão. Juntaram outros dois
colegas. Fizemos uma apresentação que fez muito sucesso.Aquilo criou uma
chispa. Acendeu em mim a chamados grupos de baile, pode-se dizer. Dali,
logo depois passei a procurar os músicos que tocavam nos bailes pela
cidade de João Pessoa. Eram muitos.
Como era esse grupo de baile?
Fundamos
uma banda chamada Elis & os Demônios, com mais três colegas da
escola. Começamos a ser contratados para tocar em bailes, para as
pessoas dançarem. Bailes de quatro horas. Eu tocava guitarra e, aos
poucos, fui me incumbindo dos solos. Eu copiava. Isso me trouxe uma
riqueza muito grande. Porque você toca de tudo. A formação mais famosa
que integrei tinha um vocal fenomenal: Os Quatro Loucos, que, antes, se
chamava Four Crazy's, numa tradução errada - o certo seria Crazy Four. A
gente tocava músicas em inglês, então eu levava as letras pro professor
traduzir, pra entendermos o que estávamos cantando. Foram experiências
importantes pra me dar noção sobre comportamento de palco, remuneração e
profissionalismo. Comecei apensar nessas coisas.
Você era muito jovem?
Muito.
Eu tinha 16, 17 anos. Agora, encostei-me aos 60. Estou em "cinco ponto
nove", companheiro. São 42 anos de carreira. Mas as coisas ainda estão
muito frescas na minha cabeça. Os grupos de baile tocavam, basicamente,
Jovem Guarda, e quase nada de forró, quase nada de samba. A gente tocava
guitarra pra conquistaras meninas e ter uma chance de colar nelas. Até
que, com 18 anos, chegou a hora de servir o quartel. Pior que eu tinha
fama de cabeludo por causa dos grupos.
Escrito por Cristiano Bastos, REVISTA Rolling Stone